“Como água e óleo, agroecologia e petróleo não se misturam!” foi o tema do encontro estadual da Campanha Nem Um Poço A Mais, organizado pelo o programa da FASE no Espírito Santo


Rosilene Miliotti¹

Encontro estadual da Campanha Nem Um Poço a Mais, serra do Caparaó. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

O encontro estadual da Campanha Nem Um Poço A Mais, realizado pelo programa da FASE no Espírito Santo, reuniu ativistas dos direitos humanos das regiões norte, metropolitana e sul do estado, além de parceiros do Rio de Janeiro e Minas Gerais, no Patrimônio da Penha, na Serra do Caparaó ². O local foi escolhido por ter suas águas ameaçadas pelos empreendimentos do litoral sul do estado que visam os rios Itapemirim e Itabapoana para o funcionamento de seus negócios.

Artistas, educadores, pescadores, quilombolas e agricultores familiares também tiveram espaço para trocas e aprendizagens em uma imersão de três dias de diálogos e vivências. Temas como o plantio de água, fertilizantes naturais, geração de combustível em pequena escala a partir de fontes diversificadas (hidrogênio, fezes, óleos vegetais) estiveram em pauta.

Gessi agradece ao chegar em uma das quedas d’água. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Gessi Cassiano, uma das lideranças da comunidade quilombola Linharinho, no Sapê do Norte, se emocionou ao chegar no Caparaó e ver a quantidade e a qualidade da água. “A gente se emociona ao encontrar as matas parecidas com as de nossas comunidades. A diferença é que lá é plano e aqui é morro”. Gessi lembra ainda que na sua região haviam muitas nascentes de água, lagoa, rios e hoje não tem mais. “Na nossa região não tem cachoeira, mas tinha água com abundância. Não temos mais por causa do desmatamento da mata. Plantaram eucalipto dentro dos brejos e nos olhos d’água”, lamenta.

A quilombola lembra ainda que ao andar por dentro da mata, sentia a energia da natureza. “Só sente quem nasceu e se criou naquele ambiente. Nascer e se criar em um lugar com mata, água e ouvindo o cantar dos pássaros é muito emocionante. Essa pessoa tem amor pela natureza, coisa que vemos pouco hoje em dia. O amor no mundo acabou por ganância. Temos que ter dinheiro, mas temos que pensar mais na sobrevivência, em quem vem depois de nós. O eucalipto me assusta e na nossa região, tirou a nossa paz. Estamos preocupados com o asfalto que está para chegar na comunidade. Será que vai causar mais impacto do que já temos? Tem coisas que a gente acha que vai trazer melhoria, mas nem sempre. Hoje nossas crianças andam tranquilos e de repente isso pode mudar”.

“Precisamos que a terra seja democratizada”, afirmou o agricultor e quilombola João Batista, representante de outra comunidade devastada pela monocultura do eucalipto, a comunidade Angelim, que também sofre com a falta d´água. “A região está virando um queijo suíço por causa da procura por água”, denuncia. Durante as rodas de conversa, João contou que não se lembra da mata, só do eucalipto. “O Angelim era rico em água antes da chegada da empresa Aracruz Celulose. Hoje já contabilizamos cerca de 170 córregos desaparecidos”, alerta.

Plantando água

O ativista e agricultor familiar Newton da Jaqueira e o grupo Plantágua (Associação dos Plantadores de Água) abriram o encontro falando sobre a experiência dos “plantadores de água”. Mas como se planta água? Newton explicou que uniu a técnica a intuição. Em sua propriedade ele cercou a nascente, para protegê-la do pisoteio do gado, implantou sistemas agroflorestais na beira do córrego e, no brejo, plantou arroz consorciado com peixes e marrecos.

Newton fala sobre o ciclo da água. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

“A água começou a voltar. Construímos caixas secas para reter mais água da chuva e abastecer os lençóis freáticos. Aí começaram a chegar os estudantes, os pesquisadores e os agricultores vizinhos”, comemorou o plantador de água. Newton ressalta ainda que “plantar não é produzir água. Plantar é aumentar a produção de água pela natureza”. É “fazer a leitura da terra” e utilizar as técnicas certas para cada área do terreno: caixas secas nas estradas, caixas cheias (mini barragens e açudes) nos brejos, terraços ou curvas de nível nos morros.

Carro movido à óleo de cozinha

Ian faz ajuste ao carro movido à óleo de cozinha. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Marcelo Calazans, coordenador do programa da FASE no Espírito Santo, explica que as experiências de tecnologias pós-petroleira como o carro movido a óleo vegetal apresentado durante o encontro, faz parte de uma segunda etapa da Campanha, que foca nas alternativas ao consumo dos derivados de petróleo. “No início da Campanha, concentramos as atividades nos impactos onde o petróleo era extraído. Com o passar dos anos e a troca de experiência com os impactados pelo petróleo começamos a pensar que a indústria do petróleo não começa na extração, mas no consumo dos derivados: combustíveis, plástico, agrotóxico”, analisa.

Segundo Calazans, é preciso mostrar para a sociedade que há outras formas de mobilidade urbana, por exemplo. “É óbvio que o automóvel, mesmo movido a ar ou a óleo de cozinha reciclado, não resolve o problema da mobilidade urbana. Você pode ter 10 milhões de pessoas andando em carros movidos a óleo reciclado em São Paulo. Isso vai resolver a mobilidade urbana? Não vai, mas vai provocar um debate sobre outras formas de combustíveis e locomoção. A ideia também não é encontrar uma outra fonte energética perfeita e limpa que possa manter a civilização petroleira porque essa civilização pode continuar para além do petróleo. A ideia é reduzir, pensar outras formas de vida, de existência de agricultura, de mobilidade e, essas sim capazes de deter ou diminuir a nossa petrodependência”, defende.

A FASE recebeu o carro adaptado no final de 2017, mas só começou a rodar após a liberação do documento³. “Para girar com o carro nós precisamos do óleo vegetal usado e para isso é preciso criar pontos de coleta nas comunidades e fazer com que ele seja um veículo de intercâmbio”, explica Flavia Bernardes, educadora do programa da FASE no ES.

Sobre o carro, os mecânicos responsáveis pela adaptação explicam que o veículo que irá circular com o óleo de cozinha deve ter motor a diesel e que a economia pode variar de acordo com o tipo de motor e óleo usado. “O óleo saturado queima mais fácil do que um óleo limpo e a potência que o carro perde em relação à gasolina é menor do que quando usamos o gás natural, por exemplo. Na maioria dos carros, o uso de óleo de cozinha aumenta a potência.  Já fiquei seis meses andando de carro sem colocar a mão no bolso para pagar combustível. Só com óleo vegetal usado doado por amigos”, diz Ian Dolabela.

“A ideia do carro movido a óleo de cozinha era justamente problematizar e encontrar tecnologias capazes de mostrar que o carro pode sair de Belo Horizonte e chegar até o Caparaó, e que pode ser uma alternativa para uma comunidade pequena que não tem posto de gasolina próximo. Não precisamos abrir totalmente mão da civilização, mas podemos pensar do que podemos abrir mão”, conclui Calazans.

Posto de gasolina, um ponto de conflito no Caparaó

Roda de conversa sobre alternativas. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O encontro foi encerrado com uma roda de conversa sobre a abertura de um posto de gasolina, um empreendimento de alto impacto social e ambiental, próximo a uma escola no Patrimônio da Penha. Os moradores participaram e relataram o quanto estão preocupados a chegada do empreendimento a região.

O Patrimônio da Penha tem se desenvolvido a partir da agricultura familiar e do turismo ecológico, e é o destino de pessoas que estão fazendo a transição das cidades para o campo, e que buscam qualidade e um outro modo de vida e de consumo, na perspectiva da preservação do meio ambiente. Entretanto, a abertura do posto, para alguns moradores, seria um avanço, uma forma dos turistas chegarem mais facilmente ao local.

Há alguns anos as ruas foram asfaltadas, o que trouxe, além de mais carros, transtornos. Aumentou o fluxo de caminhões e, consequentemente, as casas começaram a apresentar rachaduras. Outro ponto de discussão foi a influência negativa no desenvolvimento comunitário, já que as crianças, que antes brincavam livres nas ruas, agora dentro de suas casas.

Bianca Dieile, química e professora da Fiocruz, explicou que esse é um ponto de contaminação e, que além do solo e do meio ambiente, as pessoas que moram perto acabam sendo contaminadas também. “O Caparaó é um paraíso ameaçado por um posto de gasolina e pelo desenvolvimento desenfreado”, analisa.

Outro agravante é que a área onde será construído o posto não foi comprada, apenas arrendada. “Será que quem está arrendando sabe que essa terra não poderá ser mais utilizada após uma possível saída do posto?”, questiona a professora. De acordo com os moradores, já houve uma tentativa de retirar a escola do local e que por isso “é preciso fortalecer a escola”.

O posto ainda não tem a liberação da Agência Nacional do Petróleo para começar as atividades no local. Os moradores seguem realizando reuniões para impedir a construção do empreendimento próximo à escola.

[1] Jornalista da FASE.

[2] Região serrana localizada na divisa entre o Espírito Santo e Minas Gerais.

[3] O carro foi adaptado para receber óleo vegetal usado e está documentado dentro do padrão flex.