Oficialmente iniciada na década de 70, a exploração de petróleo vem fazendo vítimas há muito mais tempo no Espírito Santo. A informação vem de quem sofre até hoje com as injustiças ambientais nos territórios tradicionais visitados durante o Intercâmbio Norte da Campanha Nem Um Poço a Mais, realizado nos dias 18 e 19 de julho de 2016, no norte do Estado.

O encontro proporcionou um giro-antipetroleiro nas comunidades de Degredo, Zacarias (Cacimbas) e Povoação, em Linhares, e nos distritos de Barra do Riacho, Barra do Sahy e nas aldeias indígenas de Pau Brasil e Boa Esperança, em Aracruz. O que se viu foi que a relação entre petroleiras e as comunidades exploradas é um verdadeiro desastre.

Aqui já havia sísmica em 1952. Em 68 chegou mais gente. Eles furavam e abriam uma bacia de três metros de diâmetro e dois de largura, depois disso fomos vendo a água acabar. Para nós, foram eles que acabaram com a  camada de arenito que segurava a água. Agora tem tanto buraco na terra que está cheio de espaço pra água correr, fugir, sumir sem deixar rastro. Já teve projeto com mais de 13 mil furos aqui, eu sei porque já trabalhei nele”, contou José Costa, pescador e presidente da Associação de Pescadores de Degredo.

De acordo com Zé Costa, como é conhecido na região, os moradores não tiveram opção. As empresas chegaram, pediram servidão e quem não deu teve sua terra atravessada da mesma forma.

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José Costa, pescador e presidente da Associação de Pescadores de Degredo.

Hoje a comunidade contabiliza graves impactos na região. Já não se pode mais plantar alimento no solo explorado; o mar foi poluído por seguidos derramamentos de óleos; o principal berçário de camarão e alevinos da região desapareceu e o Rio Ipiranga, utilizado para pesca e banho secou após inúmeras intervenções das petroleiras na região. De 250 famílias, apenas 34 resistiram na região após a exploração de petróleo.

Como então perpetuar a tradição pesqueira em um território devastado pelo petróleo? O que se vê entre as populações tradicionais afetadas é a necessidade urgente de impedir o avanço da exploração petroleira e por fim, a criação de áreas livres de petróleo, ou seja, livres para a vida e para a perpetuação de sua cultura.

Relacionamento difícil

Não houve uma só comunidade em que o relacionamento entre petroleiras e comunidade não fosse descrito como conflituoso ou desastroso. Mas, um caso em específico chama a atenção: Zacarias, distrito de Linhares, é um exemplo claro de como essa exploração pode minar qualquer possibilidade de desenvolvimento humano dentro de um território tradicional.

Há 20 km de Degredo e suas atuais 110 famílias, a comunidade de Zacarias vive ao lado da Unidade de Tratamento de Gás Cacimbas (UTGC). Amargam problemas como o desemprego, a falta d´água, e a inércia do poder público e das condicionantes, que em meio ao caos, deveriam minimizar os impactos sofridos.

Há 12 anos, o empreendimento chegou a região com a promessa de emprego e desenvolvimento, mas apesar da proximidade com suas casas, apenas 4 pessoas são empregadas em empresas terceirizadas com contratos vulneráveis de licitação com a Petrobras, contam os moradores.

Segundo a presidente da Associação de Pesca de Cacimbas, Dona Laudeli, falta água, saúde e educação na região. O desrespeito é tanto que Zacarias hoje se chama Cacimbas, em referência ao empreendimento que vem minando as possibilidades de vida na região.

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Roda de conversa em Zacarias, ao lado da Unidade de Tratamento de Gás Cacimbas (UTGC)

Na comunidade que vivia da agricultura, dos trabalhos em fazendas da região e da pesca, hoje sobram carências. De acordo com Naitônio Pires dos Santos, pescador e nativo da região, na chegada da empresa a população chegou a assinar um Termo de Compromisso para garantirem o recebimento de cestas básicas, mas isso foi na Fase 1 de operação do empreendimento. ““Hoje a UTGC já está na Fase 6 e o único sinal que a comunidade recebe da empresa são os gases tóxicos emitidos por ela diariamente”, afirmou. O medo de alguma explosão é grande, sobretudo nos casos de enchentes, comuns na região. Se isso acontecer, não há nenhuma orientação sobre a quem recorrer.

Em Povoação, há 40 km de Linhares, território que também convive com dutos, encanamentos, perfurações e transformações de territórios férteis em verdadeiras áreas de morte, a mágoa é a mesma: o petróleo chegou, seduziu e destruiu.

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Encontro com pescadores de Povoação.

Chegaram como reis, e como capatazes invadiram propriedades, explodiram bombas no caminho e ignoraram o povo e o meio ambiente. Esta é uma frase que se repete entre os moradores.

Tínhamos um meio ambiente completo e ainda na década de 60 o DNOCS* drenou todo o Vale do Suruaca. Depois disso a Petrobras caiu pra dentro. Ela por sua vez não dava obediência pra ninguém, ninguém podia falar nada. Ficaram 30 anos em Regência e depois vieram pra cá, fizeram a UTGC, e por aí fomos. Trouxeram de cara 600 homens pra cá, isso aqui virou uma verdadeira Sodoma. Aumentou o número de gente, de música alta, de bebedeira e pouco depois eles já tinham uma nova obra e falavam em trazer mais de 2.600 homens pra cá”, contou Simião, pescador e presidente da Associação de Pesca de Povoação, em Linhares.

Diante de situações nunca vividas antes, a população de Povoação enfrentou graves problemas com o abastecimento de água, energia, saneamento, comunicação, e até com a moradia de seus habitantes. Muitos alugavam suas casas para as empreiteiras e iam morar embaixo de lonas na expectativa de juntar algum dinheiro.

Como condicionante, conseguiram uma sede conjunta para a Associação de moradores, Associação de pescadores e um projeto de Ecocidadania. No entanto, enfrentaram profundas dificuldades, exigências e burocracias impostas pela Petrobras. E os pescadores ressaltam, se não fosse a insistência deles nada sairia do papel. Sabem, porém, que isto não compensa a destruição causada pela empresa.

Para Simião, este processo se dá como uma morte lenta. “Pescador tem que pescar. Caso contrário estão nos proibindo de exercer nossa função. Botar uma pessoa pra fazer o que não sabe é condená-la a uma morte lenta”, desabafou Simião sobre os trabalhos que restaram na região.

De Regência as aldeias indígenas

No domingo, o giro-antipetroleiro começou em Regência com um rito de homenagem ao rio Doce, destruído pela lama da Samarco, o que inviabilizou  ainda mais a vida na comunidade já altamente impactada pela Petrobras.

O giro seguiu para Barra do Riacho, onde se concentra um enorme complexo industrial desde a chegada da Aracruz Celulose na década de 60 até o Terminal Aquaviário de Barra do Riacho, da Petrobrás (interligado ao UTGC), passando por diversos outros empreendimentos químicos e de prestação de serviço offshore como a mais recente Imetame e a Nutripetro.

Esta última já acabou com uma área de pesqueiro de camarão na região e com a melhor área de pescadinha reconhecida pelos pescadores de Barra do Riacho. E, é consenso entre os pescadores de que a comunidade pesqueira vem sendo expulsa do seu território, seja com as zonas de exclusão de 25km entorno dos empreendimentos no mar, seja pela destruição de 50% do estoque de pescado, avaliada por eles.

Vem um chupa cabra (navio) com cinco cabos e com sonorização que praticamente toca de segundo em segundo. É um barulho fortíssimo que impacta as espécies, que muda o sentido de migração, que altera tudo. Sabemos que os animais perdem o rumo com este som, que a ova seca e que isso vem diminuindo o estoque pesqueiro. Já pedimos pra mudar, isso não impacta somente a pesca, impacta o meio ambiente inteiro”, denunciou o pescador Marinaldo Miranda.

A violência com que são tratados pelas empresas também é impressionante. De acordo com Seu Ademar, pescadores são perseguidos com metralhadoras.

IMG_9038Conversa com a Associação de Pesca de Barra do Riacho.

Em Barra do Riacho as contradições nos processos de licenciamento ficam ainda mais explícitas. Enquanto o Estaleiro Jurong teve o seu licenciamento aprovado apesar de tantos impactos declarados, críticas e oposições, o atracadouro dos pescadores não consegue o licenciamento. Lá também têm destaque as empresas que já receberam a Licença de Instalação, sem sequer terem obedecido a nenhum condicionante, como o Terminal Aquaviário de Barra do Riacho (TABR). No município, os pescadores referem-se a estas condicionantes como medidas “mindigatórias”.

De Barra do Sahy até as aldeias tupiniquins e guaranis, o empreendimento mais impactante citado por moradores locais é o Estaleiro Jurong. Seja pela destruição da pesca, da área de lazer, do trânsito de caminhões, a mais grave suspeita da interrupção, desaparecimento e inversão do rio Sahy por outro  rio que tentaram rebatizar com o mesmo nome.

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Do gasoduto que atravessa as aldeias há anos, a indenização só chegou a pouco, depois de pressão com paralisação da estrada para a negociação com a Petrobras. A avaliação do cacique Werá Kwaray da aldeia guarani Boa Esperança é de que o povo está vivendo em um verdadeiro campo minado.

Como se vê, em todas as regiões visitadas pelo Intercâmbio da Campanha Nem Um Poço a Mais, os casos de desrespeito ao meio ambiente e a preservação das comunidades tradicionais se repetem e tornam cada vez mais urgente as ações que visam frear a expansão petroleira e dar visibilidade ao seu passivo ambiental e social, seja na fase da extração, transporte, armazenamento, no refino ou no uso.

Participaram do Intercâmbio Norte, pescadores e pescadoras, quilombolas, trabalhadores rurais sem terra, pesquisadores, estudantes, jornalistas, artistas, documentaristas, defensores de direitos humanos do norte, do sul, da região Metropolitana do Espírito Santo e também da Baia de Guanabara no Rio de Janeiro. Nesta oportunidade trocaram experiências a respeito dos impactos da atividade petrolífera em suas regiões, aprimoraram as críticas da expansão da exploração de petróleo e fortaleceram as relações de resistência articulados à Campanha Nem um Poço a Mais.

Texto : Flávia Bernardes e Daniela Meirelles //// Fotos: Flávia Bernardes

*Departamento Nacional de Obras contra a Seca