Livro analisa discursos da mídia sobre petróleo e Petrobras

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Leia a entrevista exclusiva com Cláudio Zanotelli, um dos organizadores do livro “A notícia como máquina de guerra” (Editora Edufes). A obra aborda questões como governança neoliberal, impactos da exploração petroleira, geopolítica internacional e a narrativa da imprensa em relação à política energética do Brasil, tendo como base mais de 200 reportagens e publicações analisadas por um grupo de pesquisadores ligados à Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

4 de setembro de 2021
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Professor do departamento de Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Cláudio Zanotelli foi um dos organizadores do livro “A notícia como máquina de guerra – Análise dos discursos sobre a Petrobras e a produção de petróleo e gás nos jornais: um enfoque no Espírito Santo”, publicado pela Edufes em 2020 e que terá uma nova edição ainda no segundo semestre de 2021.

Confira a entrevista completa abaixo.


O petróleo tem sido um dos principais produtos da economia capixaba. Como esse “boom” petroleiro é utilizado pelo governo e empresariado para fomentar a ideia de uma “redenção” com um novo ciclo de desenvolvimento no Espírito Santo?

Cláudio Zanotelli: Essa “redenção” como você diz e um “novo ciclo de desenvolvimento” é um encobrimento de interesses bens específicos de setores do empresariado e da burocracia do Estado com ganhos potenciais que puderam pressentir realizando a compra de blocos, campos e de outras atividades das Petrobras que estão à venda no Espírito Santo, bem como em outros Estados do Brasil.

Se desconsidera a desorganização da cadeia produtiva, bem como a redução dos investimentos em pesquisa que a saída da Petrobras está ocasionando. Me parece que são interesses imediatos, de ganhos imediatos. Em alguns casos se assiste a uma associação de empresas internacionais, nacionais, regionais e locais para arrematar certos “ativos” e também a presença de grupos financeiros nas negociações. Também, muitas das empresas que se constituem para comprar ativos da Petrobras são compostas de pessoas que foram altos responsáveis da empresa ou ocuparam cargos importantes nos órgãos de controle e no Ministério das Minas e Energias, utilizando, assim, de informações privilegiadas para se lançar no negócio do petróleo. Ou seja, são negócios que recobrem os discursos sobre “desenvolvimento regional ou do Espírito Santo”. Alguns alimentam um discurso “capixabista” como se toda a população ganhasse algo, como se houvesse uma “personalidade”, uma “individualidade” do território do Espírito Santo, o que recobre a existência de efetivos interesses em disputa.

-Qual o resultado da análise dos discursos da mídia feito pela pesquisa? Quais os principais elementos desses discursos e como se relacionam com os grupos políticos e econômicos dominantes?

Primeiro vou explicar o contexto da pesquisa: ela analisou um conjunto de jornais impressos e eletrônicos, nacionais e do Espírito Santo, em 2017. Porém, não se ateve somente a esse período. Além da colocação em perspectiva do discurso desses jornais, realizamos uma contextualização das matérias, fizemos explicação de texto e ampliamos o escopo do livro correlacionando os fatos com o que foi anunciado sobre os fatos por parte da mídia. Assim, ampliamos as análises para o período recente tanto a partir de matérias da imprensa, quanto a partir de nossas pesquisas empíricas e da literatura sobre o tema. Portanto, o livro é mais do que parte do título, que anuncia como uma análise dos discursos da mídia sobre a Petrobras e o petróleo.

Discursos não são entendidos por nós como “ah, ele está fazendo um discurso”, ou seja, algo vazio, algo que é somente uma retórica sem efeito ou como algo escrito que não teria nenhum efeito, que seria um simples reflexo provisório de certas posições sobre a realidade. De fato, o “discurso” aqui tem que ser entendido no seu sentido estratégico, em seu sentido de efeitos concretos sobre o real. Não é um simples “discurso”, mas uma ação concreta sobre o real.

O discurso não é consequência de um real, ele é, também, produtor do real. Os discursos orquestrados, reiterados, replicados cotidianamente, produzem efeitos bem concretos sobre as relações de poder e sobre as relações econômicas, por isso o título principal do livro: “A notícia como uma máquina de guerra. Pois pensamos que a política e a política econômica são relações de poder, relações de força, e, assim, a política é uma espécie de guerra de posição, de guerra de convencimento e de ação.

Desse modo, as notícias e matérias dos jornais que assumem e difundem como positivos os discursos relativos à privatização da Petrobras, que apoiam a “concorrência”, o “mercado” em todas as dimensões da vida, são ferramentas de poder, de ação, de transformação da realidade e não meros “discursos” sem efeitos concretos. Nesse sentido não se trata de ideologia, de disfarce, de simples recobrimento do real, mas de uma ação política concreta sobre o real.

-Há um discurso único na mídia em relação à exploração petroleira no Brasil? Ou você observa outras narrativas?

Os discursos predominantes das 203 matérias estudadas em todos os veículos analisados impressos e eletrônicos (A Gazeta, Notícia Agora, Século Diário, Folha Vitória, Metro Jornal, A Tribuna, Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, O Globo e Jornal do Brasil) estavam localizados em sua quase totalidade, com algumas poucas exceções, nas editorias de economia e de política e tratavam de maneira predominante sobre os royalties oriundos do petróleo e sua distribuição, sobre os leilões dos blocos e campos de petróleo, sobre as formas de produção e exploração nos quadros da competição entre empresas e dos seus investimentos e a hipotética criação de empregos e sobre as denúncias de corrupção como forma de apoiar os discursos dominantes relativos à privatização da Petrobras nos quadros da defesa de uma política neoliberal.

Os jornais evocam de maneira frequente o fato de que a competição e a privatização levariam a uma queda dos preços dos combustíveis e do gás, coisa que não foi seguida de efeito. Basta ver onde estamos com os preços dos combustíveis depois das gestões da Petrobras alinharem os seus preços nacionais aos preços internacionais a partir do governo Temer

Praticamente nenhuma consideração sobre os efeitos nefastos da exploração do petróleo sobre os territórios e seus habitantes, poucas matérias analisando os acidentes cotidianos dos processos de exploração e produção de petróleo e gás. Com a exceção do Século Diário e de algumas poucas e raras matérias em grandes jornais, nenhuma reflexão sobre o necessário enfrentamento e planejamento da transição energética e do abandono progressivo da energia fóssil.

-Na sua opinião, quais seriam os principais impactos negativos da expansão petroleira?

A questão é ampla, porém há níveis de análises globais, regionais e locais sobre os efeitos da cadeia do petróleo no território e sobre as populações ali vivendo.

Do ponto de vista global é inegável e explícito que a mudança climática é o resultado da utilização da energia fóssil e, de maneira mais ampla, da emissão de gases de efeito estufa. Portanto, a redução da utilização do petróleo está na ordem do dia. A questão é que os investimentos que o grupo Petrobras realizou em energias renováveis em períodos anteriores aos dos governos Temer e Bolsonaro, apesar de louváveis, foram insuficientes. E nesses dois últimos governos não há nenhuma política para a empresa nesse sentido. Ao contrário, estão vendendo ou já venderam todas as plantas de energia renovável (eólicas, biocombustível, etc).

 

Crédito: Flávia Bernardes

Foto: Flávia Bernardes

Do ponto de vista tanto nacional quanto regional, sobretudo na região Sudeste, em particular no Rio de Janeiro, onde se concentra o grosso da produção de petróleo no mar com a exploração dos reservatórios do pré-sal nas bacias de Campos e de Santos, os efeitos, além daqueles que constatamos anteriormente, são da ordem de riscos de acidentes, de poluição, impactos sobre a fauna marinha e sobre os mares, sobre a paisagem e os conflitos socioambientais diversos, sobre os quais temos diversos exemplos no Espírito Santo e no Rio de Janeiro.

Mas, para além dessa questão, restam os efeitos da distribuição desigual da renda do petróleo, em 2018, pois 86% delas, a nível nacional, foram destinadas ao Rio de Janeiro (61%), Espírito Santo (11%) e São Paulo (14%). E dentro desses estados, apesar de fundos regionais de desenvolvimento para redistribuição de parcelas dos recursos dos governos entre todos os municípios desses estados, se concentram em poucos municípios confrontantes dos campos ou que têm atividades ligadas ao petróleo.

Assim, há uma desigualdade na distribuição das rendas do petróleo a nível nacional e no interior dos estados e municípios dos três estados citados, o que contribui para o estabelecimento nos estados e municípios mais dependentes desses recursos de uma verdadeira economia dos royalties que cria distorções territoriais fenomenais.

Em nível local, claro, os impactos negativos são os mais diversos, desde a presença de infraestruturas que têm efeitos sobre o meio ambiente até os efeitos provocados sobre a vida cotidiana de moradores de zonas costeiras próximas às instalações ligadas à exploração, produção e circulação do petróleo e do gás, como é o caso do Terminal Norte Capixaba em São Mateus ou das instalações de petróleo neste município e em Linhares e Aracruz.

Crédito: Flávia Bernardes

Crédito: Flávia Bernardes

Por outro lado, é claro que a indústria do petróleo movimenta volumes importantes de investimentos que percolam pela economia como um todo, bem como constitui uma cadeia produtiva importante que tem como consequência a geração de centenas de milhares de postos de trabalho de maneira direta e indireta, bem como tem efeitos sobre a geração de impostos, etc.

Isso não é negligenciável e deve ser enfrentado na análise que se faz da cadeia e da forma como se deverá fazer a transição do petróleo para outras energias, compensando-se gradualmente a perda de postos de trabalho no setor do petróleo com a criação de postos de trabalho nos setores de energia renovável, o que diversos estudos demonstram ser possível e factível e que já é realizado em vários países.

O problema é que no Brasil não se enfrenta essa questão de maneira séria e organizada e, pior, os governos Temer e Bolsonaro desorganizaram a cadeia com as privatizações generalizadas do setor com o propósito de explorar o mais rápido possível e de retirar o máximo proveito possível do petróleo enquanto ele tem valor comercial, não havendo nenhuma visão estratégica da exploração e produção dessa energia, nenhuma perspectiva de se explorar o petróleo, quando necessário, de maneira equilibrada e em consonância com as necessidades da sociedade, planejando, por exemplo, ao mesmo tempo, a manutenção de reservas inexploradas e estratégicas para se garantir a transição para a energia descarbonada.

Essa desorganização atual teve reflexos enormes sobre o emprego. Se perderam desde 2016 centenas de milhares de postos de trabalho com a privatização de setores importantes da Petrobras, bem como a redução dos investimentos no setor e a redução da obrigação do conteúdo tecnológico nacional incorporado aos processos produtivos. A internacionalização do setor e a penetração dos interesses das grandes multinacionais como Exxon, Shell, Total, Equinor e outras em vários segmentos da cadeia e, principalmente, no Pré-sal, nos colocam questões sérias sobre a soberania energética e a soberania do povo sobre seu território.

-Uma das questões abordadas na obra é sobre os ataques à Petrobras, as privatizações e a partidarização das críticas em prol de uma governança neoliberal. Como a geopolítica internacional do petróleo influencia na política brasileira?

O que é geopolítica? É a relação de poder e de influência que se estabelece entre instituições políticas, econômicas e sociais com inscrição territorial em busca de ampliar seu poder. Para isso se servem de estratégias e táticas, de guerra e de política. Essas instituições são, predominantemente, Estados e grandes grupos econômicos multinacionais que buscam tirar vantagem nas relações de forças que se estabelecem internamente às nações ou internacionalmente.

No caso recente da Petrobras e da operação jurídica e policial denominada de Lava Jato, o que nós demonstramos é que a imprensa,de maneira maniqueísta e acrítica,resolveu apoiar essa operação dita de combate à corrupção e se transformou numa correia de transmissão de seus propósitos. Essa posição revelou uma construção discursiva que inventou um “inimigo interno” como estratégia de luta política que acabou por enfraquecer a Petrobras no jogo econômico global.

Esse inimigo público designado foi o Partido dos Trabalhadores. Partido que foi objeto de toda a ira dos jornais e, em consequência, da ira de parte da população. Nessa onda emergiram heróis efêmeros úteis na guerra política declarada pela tomada do poder interno. Mas, o que se revela por detrás dessa operação são os interesses financeiros e econômicos e de interesses de acumulação do poder judiciário que foram, nesse caso, associados de maneira voluntária aos interesses dos Estados Unidos via colaboração com o Departamento de Justiça e o FBI americanos em nome de leis americanas que lhe asseguram a persecução judicial extraterritorial de agentes do terrorismo ou considerados como tal, ou que cometeram atos de corrupção e negociam nas bolsas americanas ou fazem negócio com esse país.

Crédito: Flávia Bernardes

Crédito: Flávia Bernardes

Por esse viés os interesses do governo americano puderam penetrar no interior da Petrobras e, em consequência, no interior do território brasileiro com efeitos sobre a forma e o fundo da política econômica relativa ao petróleo. Isso representou graves ataques à soberania popular e nacional que estabeleceu essa empresa como de interesse social e público e que está (mas até quando?) sob o controle do Estado brasileiro.

Em consequência desse movimento, houve não somente um enfraquecimento das posições econômicas e sociais da empresa, mas também uma redução do papel econômico do Estado via grupo Petrobras no processo de controle e gestão dos recursos do petróleo. Mudou-se a regulação do acesso aos recursos, permitiu-se uma maior autonomia dos capitais internacionais no setor, bem como se facilitou e incentivou a presença de capitais internacionais na área mais cobiçada pelas companhias internacionais: o pré-sal, uma das maiores províncias de petróleo descobertas no século XXI no mundo. Associada à guerra interna pelo poder a partir do lawfare e a perseguição do inimigo, está a posição de se defender o neoliberalismo e seu avatar: a concorrência do mercado livre.

O neoliberalismo, fundado a partir dos anos 1930 como doutrina na Europa e nos Estados Unidos, utiliza os discursos clássicos sobre a soberania como razão do poder que viria colocar fim à guerra civil entre interesses particulares, invocando o “Estado de Direito” como base da concorrência contra os interesses particulares e de categorias específicas da sociedade, situando a doutrina neoliberal acima da luta de classes, essa última sendo considerada como a guerra civil.

Mas a essa aparente exclusão da guerra civil do campo social e político se sobrepõe uma segunda operação que implica em assumir uma luta contra o “inimigo” que é crítico do mercado e do Estado garantidor da ordem concorrencial. Portanto, a guerra civil retorna sob outra forma, a guerra política, a guerra de opiniões, a guerra para controlar a crítica ao neoliberalismo, a guerra aos que são contra as privatizações, que se contrapõem ao mercado livre, que são vistos como criminosos, “inimigos da civilização” e do “Estado de Direito” forjado para ser a antítese da real democracia e da soberania popular. Daí uma constitucionalização econômica da ordem concorrencial que concebe um Estado forte e capaz de neutralizar todo processo de politização da economia, mesmo que para isso seja necessário ditadura ou golpe militar.

– O livro terá uma nova edição? Como vai ser? O que mudou de lá pra cá?

Sim, uma nova edição está sendo preparada e deve sair ainda em 2021 pela Editora da Ufes, a Edufes. Na realidade essa nova edição foi atualizada. Acrescentamos os últimos movimentos da privatização do grupo Petrobras, bem como corrigimos e atualizamos determinados dados e a obra passou por uma revisão geral e ajustes de erros que saíram na primeira edição.

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