Carta Política do VII Seminário Nacional da Campanha Antipetroleira “Nem um poço a mais!”

4 a 7 de Agosto 2022

Piúma e Presidente Kennedy/ES

Reunidas em nosso VII Seminário Nacional, as organizações e movimentos da sociedade civil brasileira, da Campanha “Nem um poço a mais!”, declaramos nosso total repúdio ao Governo de Jair Bolsonaro e seu projeto autoritário, violentador de direitos humanos e da natureza. Por seu escárnio contra quilombolas, por sua exclusão da pesca artesanal, por sua política de extermínio dos povos indígenas e da juventude negra das periferias urbanas, por seu projeto armamentista do agro latifúndio e das milícias, por sua violência contra mulheres e por seu sarcasmo homofóbico, por sua defesa da ditadura militar e de torturadores, por seu projeto devastador da natureza e seu profundo descaso com a vida. Fora Bozo! Fora Bolsonaro!

Nos somamos às diferentes lutas antifascistas, e de enfrentamento dos preconceitos e das desigualdades sociais e ambientais, que desde sempre estruturam a sociedade brasileira, fundada sobre o extermínio dos povos indígenas, sobre a escravização dos povos africanos, sobre o extrativismo e o latifúndio exportador de matéria prima. Militantes pela democracia e pela ampliação de direitos da classe trabalhadora, nos comprometemos com a proteção dos territórios e com a defesa intransigente das pessoas, organizações e comunidades ameaçadas pela expansão do desenvolvimento capitalista e petroleiro.

A indústria de óleo e gás é a base energética absoluta do desenvolvimento capitalista. De 1900 a 2013 a extração de petróleo aumentou 207 vezes. Em 1913 era 5% da energia, em 1970 era 50%, em 2021, 80 % da energia consumida no mundo. Esse ciclo de apropriação e descarte de recursos naturais nos leva a uma ruptura com o metabolismo da Terra. A indústria petroleira é a principal responsável pelo aquecimento global e pela crise ambiental. Ao mesmo tempo, é a principal investidora global da economia verde e suas diferentes fórmulas de greenwashing: bioeconomia, carbono neutro, redd, mercado de carbono, selos verdes de sustentabilidade etc. Pura farsa! Na real, a economia verde não é contraditória, mas sobrevive justamente da expansão da indústria petroleira. Sob o controle das corporações a transição energética é apenas um nicho de mercado, para latifúndios de placas solares e torres eólicas, para as corporações de cana, da soja e do eucalipto geneticamente modificado. As corporações trocam entre si os créditos e débitos da poluição. A roda da civilização capitalista não pode parar de se expandir, em detrimento da vida no planeta. Submetida à condição de mercadoria, para as corporações, a natureza só tem valor de troca. Para que usos a sociedade precisa de mais energia? Para quem é necessária a expansão petroleira e da economia verde?

A expansão da indústria petroleira e de sua infraestrutura segue em paralelo ao aprofundamento da petrodependência dos modos de vida, de produção e consumo. É necessário barrar esse processo suicida, de uma civilização baseada no agrotóxico, no plástico, no automóvel e nos combustíveis fósseis.

Aprendemos no VII Seminário que a violação de direitos humanos e de direitos da natureza pela indústria petroleira é seletiva. Opera desde a perspectiva do racismo ambiental. Em terra, contamina e expropria territórios tradicionais, quilombolas, indígenas, ribeirinhos, restingueiros, territórios de comunidades de pesca artesanal. Também contamina e expropria famílias camponesas e da agricultura familiar, concentra terra e impede a Reforma Agrária. Nas cidades, a indústria petroleira contamina o ar, as águas e a terra, nas periferias urbanas onde habita a população mais pobre, na vizinhança de refinarias, termoelétricas e em distritos portuários e industriais. No mar, a indústria petroleira interdita acesso, destrói corais e berçários, saliniza manguezais e restingas, afugenta e contamina o pescado. Devasta a vida marinha.

Alertamos para a falta de saneamento básico, para falta d´água, na rede educacional pública e nas casas das famílias mais empobrecidas, habitantes das periferias e distritos petroleiros. Isso em um ambiente transpassado por enorme extensão de dutos de óleo e gás. Ressaltamos os impactos na vida das mulheres e das mulheres negras, em particular, bem como os danos da poluição petroleira sobre a saúde pública em geral, com o agravamento exponencial de incidência de câncer e outras doenças respiratórias, cardiovasculares e ocupacionais, como no entorno da REDUC, na Baixada Fluminense, do Porto de Tubarão em Vitória, ou da TKSA, na Baía de Sepetiba. O desenvolvimento petroleiro não trouxe prosperidade à Barra do Açu, em Campos, onde se instalou o Porto do Açu. Tampouco para Macaé, a “capital nacional do petróleo”, onde 40 mil famílias passam fome.

Nas Rodas de Conversa, refletimos sobre cada um dos momentos do metabolismo petroleiro e seus crimes. Os poços maduros em terra, recém privatizados pela Petrobras, e seus mega históricos de crimes sociais e ambientais, no Norte do ES, na Ilha de Maré/BA. Os constantes derrames e sucessivos vazamentos em navios, plataformas, dutos, como no litoral do Nordeste, nas Bacias de Campos e de Santos, na Baía de Guanabara/RJ. As explosões e contaminações das refinarias e terminais de óleo e gás, como em Duque de Caxias/RJ, no Porto de Santos/SP. Avaliamos a expansão da exploração do mar, e os projetos de instalação de portos e plataformas petroleiras ao longo da Costa Atlântica, na foz do Amazonas (PA/AP), na foz do São Francisco (AL/SE), na foz do Itabapoana (ES/RJ), em Macaé, e sobre as beachrocks de Jaconé/Saquarema/RJ.

No dia 5 de Agosto, dia da Romaria das Neves, em Presidente Kennedy, constatamos a total desinformação da população, a respeito das ameaças e riscos relacionados à instalação do Porto Central. A grande maioria sequer sabia que aquela poderia ser a última romaria antes da desconfiguração total do espaço/templo da igreja jesuítica, reivindicada junto ao Vaticano como Santuário, não apenas pelo patrimônio histórico e cultural, mas principalmente por abrigar a romaria da fé popular. Também pudemos constatar a mata de restinga a ser destruída pela instalação do Porto Central, rica de diversidade de flora e fauna, área que deveria ser protegida no que ainda resta da Mata Atlântica. E no barco, com pescadores da Colônia Z14, pudemos observar a foz do Rio Itabapoana, e sua longa planície de alagados, alguns já interditados para a pesca artesanal da região. Subindo rio acima, as hidrelétricas controlam sua vazão, conforme seus lucros e interesses.

Quando da construção da infraestrutura petroleira, seja porto, terminal, hidrelétrica, refinaria, etc, por todos os estados e regiões, se repete o mesmo fenômeno: o aumento geométrico da violência contra mulheres e meninas, com a chegada de milhares de trabalhadores temporários e precarizados, homens e jovens. Os distritos petroleiros geram em larga escala gravidez na adolescência e uma epidemia social de famílias sem pais, de “filhas e filhos do vento”. Geram também redes de prostituição. Novas doenças chegam com os trabalhadores temporários. Tal como aumentam os crimes de roubo, os homicídios, a insegurança pública. No Estado petroleiro, as políticas públicas de seguridade social e ambiental nunca crescem na mesma proporção e escala de devastação da indústria petroleira. Porque o Estado petroleiro alimenta um círculo vicioso: quanto mais petróleo, mais doença. quanto mais royalties, mais insegurança. quanto mais compensações, mais vazamentos. Um futuro sempre adiado, sem destino. O Estado petroleiro precisa ser freado!

Durante os processos de licenciamento, nunca é possível dizer não. Em um jogo de cartas marcadas, a consulta pública não segue os mínimos protocolos de livre e informado consentimento. Nas audiências públicas, as empresas e seus agentes políticos mobilizam seus defensores, técnicos, burocratas, políticos, interesseiros, e reduzem a nada, ou quase nada, a participação crítica da sociedade civil, amedrontada e desinformada. Desdenham do saber dos anciãos e anciãs, menosprezam o conhecimento e o saber das comunidades em seus territórios. Limitam seus lugares de fala. Nos EIA/RIMA, as informações são manipuladas pelas empresas e pelos dirigentes que controlam a burocracia dos órgãos de Estado. Os projetos nunca são avaliados sinergicamente, nem em horizontes temporais e espaciais adequados. Negam e difamam a ciência crítica e independente. Os danos são sempre minimizados e os falsos “impactos positivos” (emprego, desenvolvimento) são disseminados em larga escala pela propaganda verde empresarial, associada com os governantes de plantão. Ao final, os projetos são liberados, mediante condicionantes que nada condicionam, compensações que nada compensam, mitigações que nada mitigam. Chega de audiências de cartas marcadas! Consulta é como na Convenção 169 da OIT: livre, informada, democrática.

Nos preocupam enormemente as políticas públicas de expansão da indústria fóssil, tal como planejadas no Plano Decenal de Energia (MME), no REATE (Programa de Revitalização da Atividade de Exploração Produção de Petróleo e Gás em Áreas Terrestres), nos Leilões de ofertas de novos blocos para exploração, da ANP (Agência Nacional de Petróleo e Gás), na privatização da Petrobras e da Eletrobras. Vão ampliar ainda mais o cenário de violações.

O Plano Decenal de Energia (PDE) prevê aumento de extração de 2,9 milhões para 5,2 milhões de barris/dia até 2031. Uma expansão de 78%, com destaque para as reservas do pré-sal. No gás natural, a exploração planeja subir 116%. Em ritmo de crescimento acelerado, o Brasil deverá subir de sétima para quinta posição de maior explorador e exportador de petróleo do mundo, na contramão da urgente e necessária redução das emissões nacionais e globais de gases do efeito estufa.

Já o Programa de Revitalização da Atividade de Exploração e Produção de Petróleo e Gás Natural em Áreas Terrestres (REATE) tem a meta de duplicação da produção em 10 anos. Até 2030, pretende dobrar o patamar atual de cerca de 250 mil barris/dia para 500 mil b/d. O projeto é sacar principalmente o gás, em poços novos, em terra, atingindo 14 Estados. E até a última gota de óleo, nos poços maduros, sem reparação do histórico de crimes desses poços abertos pela Petrobras e em processo de privatização/liquidação, no ES, BA, AM, RN.

A realização de sucessivos leilões ANP e o edital de oferta permanente publicado em 30 de julho de 2021 oferece um “saldão” do petróleo brasileiro. Este edital trata de 1.068 blocos em 17 bacias sedimentares brasileiras: um total de 462,5 mil quilômetros quadrados (mais de 16 vezes o tamanho de Alagoas), com 522 blocos nas bacias terrestres e 546 blocos nas bacias marítimas. Restam 1.005 blocos que poderão receber ofertas pelas atuais 79 empresas aprovadas pela Comissão Especial de Licitação (CEL) da ANP. No segundo semestre de 2022, além da Petrobras, a lista de empresas inscritas reúne gigantes do setor de óleo e gás como BP, Chevron, CNODC CNOOC, Petronas, Shell e Total. Também ExxonMobil, Equinor e Repsol têm interesse na expansão offshore do petróleo e do gás. Com a acelerada privatização da Petrobras, o ritmo e a natureza da expansão petroleira fogem cada vez mais ao controle do Estado e da sociedade civil brasileira. É preciso barrar esse processo!

Por toda parte, as corporações petroleiras assediam a resistência. Marginalizam e criminalizam defensores de direitos humanos, submetem pesquisadores e ambientalistas, difamam comunidades e ameaçam de morte suas lideranças nas linhas de frente dos conflitos. Submetem pela violência toda a população habitante dos territórios, transformados em zonas de sacrifício. Repudiamos a violência das milícias das empresas e do Estado, contra as lideranças e comunidades. Denunciamos as ameaças, pressionamos por políticas e programas de proteção de Direitos Humanos, e construímos redes de mútua proteção da própria sociedade civil, quando nos somamos às lutas de resistência em Ilha de Maré (BA), na Baía de Guanabara, na Baía de Sepetiba, em Campos e Macaé (RJ), em Presidente Kennedy, Linhares e São Mateus (ES), em Suape (PE), e em todo país, onde se experimenta a violência da indústria petroleira, bem como no Sul Global, como em Angola e na Argentina.

Conclamamos a sociedade civil brasileira, seus movimentos, redes e organizações a se somarem à Campanha “Nem um poço a mais!”. Fora petroleiras! Fora Porto Central! Fora Porto do Açu! Fora Porto de Jaconé! Fora Porto de Suape! Fora Porto de Aratu! Fora Refinarias, Termelétricas! Viva a resistência antipetroleira e anticapitalista! Pela regularização e titulação dos territórios de pesca artesanal, quilombolas e indígenas! Pela Reforma Agrária, contra o latifúndio! Pela agroecologia camponesa! Pela memória dos territórios! Pelos direitos humanos e da Natureza.

Assinam: MPP (Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais) CPP (Conselho Pastoral dos Pescadores) ANP (Articulação Nacional das Pescadoras) Fapaes (Federação das Associações de Pescadores Profissionais e Aquicultores do Estado do Espírito Santo) APAPS (Associação dos Pescadores Artesanais de Porto de Santana/Cariacica) AHOMAR/RJ Pastoral da Ecologia Integral REDI Itabapoana FASE CDDH-Pedro Reis/Cachoeiro de Itapemirim Coletivo FEPNES (Fortalecimento e Empoderamento da População Negra do sul do ES) MNDH (Movimento Nacional de Direitos Humanos) FMCJS (Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental) Frente por uma Nova Política Energética FAPP-BG/RJ (Fórum dos atingidos pela indústria do petróleo e petroquímica das cercanias da Baia de Guanabara) Fórum de Sepetiba CPT MST MPA COEQ (Coordenação Estadual Quilombola Zacimba Gaba/ES) CONAQ Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais de Sergipe RUCA (Rede Urbana Capixaba de Agroecologia) Baia Viva SOS Jaconé Sindipesca/RJ Movimento Anarquista/ES Mulheres Novo Tempo – São Mateus/ES Assembleia Mar Del Plata- Argentina