“Não existe indústria petroleira segura”
Surgida em 2015, a Campanha Antipetroleira Nem Um Poço a Mais vem articulando movimentos sociais e organizações ligadas a pescadores artesanais, quilombolas, camponeses indígenas, além de ambientalistas, defensores de direitos humanos, artistas, acadêmicos e outros, em torno uma questão fundamental: a superação da civilização petroleira, cuja energia que a movimenta está baseada principalmente em combustíveis fósseis, poluentes e não renováveis. Sociólogo Marcelo Calazans fala sobre a “petrodependência” de nossa sociedade e as propostas da Campanha Nem Um Poço a Mais.
Sociólogo Marcelo Calazans fala sobre a “petrodependência” de nossa sociedade e as propostas da Campanha Nem Um Poço a Mais
Surgida em 2015, a Campanha Antipetroleira Nem Um Poço a Mais vem articulando movimentos sociais e organizações ligadas a pescadores artesanais, quilombolas, camponeses, indígenas, além de ambientalistas, defensores de direitos humanos, artistas, acadêmicos e outros, em torno uma questão fundamental: a superação da civilização petroleira, cuja energia que a movimenta está baseada principalmente em combustíveis fósseis, poluentes e não renováveis.
Para conhecer um pouco mais sobre os debates e ações que giram em torno desses movimentos, conversamos com o sociólogo Marcelo Calazans, integrante da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), uma das impulsionadoras da Campanha Nem Um Poço a Mais desde o Espírito Santo.
-Qual foi o contexto em que surgiu a Campanha Nem Um Poço a Mais?
Na época se vivia no horizonte já então decadente do boom da expansão do pré-sal, descoberto na década anterior. Nestes 10 anos, de 2003 a 2013, a participação do petróleo no PIB brasileiro salta de 3% para 13%, reconfigurando a posição do próprio país como um dos maiores “produtores” globais de petróleo e gás e, é claro, agravando os conflitos e violações, e o racismo ambiental. Neste período, um dos principais objetivos da Campanha (e continua sendo) era dar visibilidade aos danos e à destruição social e ambiental desta expansão da indústria do petróleo, e da exploração offshore, que ameaçava comunidades tradicionais e populações que habitam ao longo da Costa Atlântica de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, região do pré-sal. Enquanto no mar se instalavam as plataformas, em terra se instalava uma grande infra-estrutura de apoio: portos, terminais, dutos, tanques, etc.
E não apenas da Petrobras, mas também da Shell, do porto de Roterdã e do Açu, do estaleiro naval Jurong, as empresas de dragagem da Holanda, além das empresas internacionais: Shell, anglo-holandesa, Equinor, da Noruega, Chevron dos EUA, Repsol da Espanha, Total da França, Sinopec e as chinesas etc.
Embora a Campanha seja recente, ela vem se somar a lutas locais bem mais antigas. Sempre houve resistência local contra a instalação e contra as operações da indústria petroleira no Brasil. Nas regiões e territórios subordinados, onde se instalaram os poços de extração em terra, por volta da década de 70 e 80, no Espírito Santo, na Bahia, no Amazonas, em Sergipe ou no Rio Grande do Norte, as narrativas demonstram que foram instalações unilaterais, sem nenhum diálogo com os povos habitantes desses territórios, sem chance de dizer não! A Petrobras era a própria república com S.A. Exercia um poder legitimado na violência do próprio Estado, e em nome do desenvolvimento.
No Norte do Espírito Santo, por exemplo, os primeiros poços foram abertos em territórios quilombolas, campesinos, em São Mateus e Conceição da Barra, e indígenas e ribeirinhos, em Linhares. Foram poços abertos pela Petrobras, sem nenhum respeito ou consulta prévia e informada às famílias e comunidades locais. Na comunidade quilombola de Linharinho, em Cantagalo, Conceição da Barra, o contrato de servidão da terra foi assinado com o polegar direito do pai de Seu Corumba. (vide o filme “Seu Corumba, o sheik pobre” – https://www.youtube.com/watch?v=3Do6c20QWys ). Tal como em Linhares, na foz do Rio Doce, no território indígena de Areal, ou na família de Dona Kátia, ribeirinha e pescadora artesanal que também plantava alimentos e cacau sob a Mata Atlântica. Havia resistência, mas era calada.
Quase 50 anos depois, os poços já maduros, pouco produtivos, alguns mesmo abandonados, mas os danos e a contaminação continuam muito ativos. Sob qualquer análise retroativa, se constata hoje o empobrecimento radical das famílias, a ocupação dos territórios pelas estruturas de extração, dutos, terminais de óleo e, claro, um histórico de vazamentos e contaminações não notificadas e nunca reparadas, nem às famílias, nem às comunidades, nem à natureza. A Campanha tem sua força originária a partir de centenas de lutas locais como essas.
-A Campanha costuma alertar sobre a “petrodependência”, uma sociedade “viciada” em petróleo. O que quer dizer com isso?
O objetivo principal da Campanha Nem Um Poço a Mais é, como tenta dizer o próprio nome, barrar a expansão desse modelo de sociedade baseada no petróleo. Um desenvolvimento fundado não apenas na energia fóssil como combustível, mas também nos derivados do petróleo: os fertilizantes químicos que envenenam os alimentos, o plástico que entope os lixões e as praias, as baías e oceanos, os cosméticos que contaminam o corpo, as tintas, lubrificantes, etc.
Barrar a expansão do modelo não significa, é claro, retirar todo e qualquer uso do petróleo e de seus derivados, de um ano ou de uma década para outra. Nem um poço de petróleo a mais sequer significa ainda uma redução do atual padrão petrodependente e desigual, de produção e consumo. Significa tão somente não aprofundar essa dependência e desigualdade, seja na macroeconomia social, seja na vida cotidiana. Não nos lavamos do óleo mergulhando para dentro do poço de petróleo.
E aqui, um princípio norteador importante. Tanto no plano global como no nacional, existe uma enorme desigualdade social no que tange ao acesso e ao consumo de petróleo e derivados. Por exemplo entre as sociedades do Norte, coloniais, e industrializadas mais cedo, e as sociedades do Sul, de industrialização mais tardia, e sob a violência do colonialismo e imperialismo do Norte.
Também nos aspectos de classe e racial essa desigualdade se explicita. A energia no Brasil, por exemplo, não se universalizou ao todo, para todas as classes mais empobrecidas e vulnerabilizadas, nem para todas as populações negras das periferias urbanas, nem para todos povos tradicionais indígenas, ou quilombolas, por exemplo. E, no entanto, há um sobreconsumo de setores empresariais e nas elites. Redistribuir o que já se produz é um princípio prévio para se pensar qualquer processo de transição. Mas não basta.
Na Campanha Nem um Poço a Mais, bem como em redes e fóruns nacionais parceiros de que participamos, como o Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Social, a Rede Brasileira de Justiça Ambiental, o Grupo Carta de Belém, e nas redes internacionais como Oilwatch, temos aprofundado o debate do “Para quê?” e do “Para quem?” da expansão do modelo extrativo petroleiro. E quando tentamos responder essas perguntas, se evidencia que a expansão de novos poços onshore e offshore, ou em cenário energético mais amplo, as novas hidroelétricas, termoelétricas, bem como os parques eólicos que têm destruído comunidades de pesca artesanal no Nordeste; se evidencia que nada disso tem por objetivo reduzir a desigualdade de acesso à energia das famílias e comunidades, e nem da sociedade em geral.
Belo Montes não são construídas para abastecer comunidades, ou diminuir o custo de energia das famílias, mas suprir a demanda de empresas de alumínio! Petróleo e gás, fertilizantes, são extraídos e produzidos para exportação, ou para demanda interna do agronegócio e suas monoculturas químicas, também de exportação, seja soja ou celulose. As petroquímicas e refinarias abastecem navios, aviões e o transporte rodoviário dos complexos industriais. Alimentam uma mobilidade urbana ainda baseada na civilização do automóvel individual. A expansão do modelo petroleiro não visa ao bem estar social, não prioriza os mais pobres e vulneráveis, nem pretende o bem comum. Ao contrário, centraliza ainda mais a renda e o poder nas mãos das corporações e penaliza os povos e habitantes do vasto entorno do complexo industrial e portuário petroleiro.
Não deixar que um modelo de sociedade petrodependente se expanda não é uma tarefa simples, embora seja condição de possibilidade de transição para novas formações sociais. Um modelo que se desenha nas origens do próprio capitalismo, ainda herdeiro direto da Revolução Industrial inglesa e nos EUA, não se detém em poucas décadas. O nível de petrodependência das sociedades modernas é de tal monta, um vício tão estrutural e de mais de 200 anos, que não se cura em pouco tempo, com camisa de força, oração, ansiolíticos ou choque elétrico. Nenhum vício se cura dessa forma!
Redistribuindo a energia já produzida, os poços já abertos e projetos já instalados, priorizando reduzir a desigualdade social e racial do acesso a energia, pode abrir a possibilidade de um debate mais amplo e profundo na sociedade, sobre os usos necessários, justos, e os usos abusivos, desnecessários, anacrônicos, de uma energia que tão rara e cara, como a que está no pré-sal, a quase 7 mil metros da lâmina d’água do Oceano Atlântico.
Não tem nenhum sentido sacar o pré-sal para mais plásticos one-way, mais caminhões e venenos do agronegócio, para mais alumínio etc. A roda petroleira precisa parar de acelerar seu giro viciado, como tenta fazer com o mercado de carbono, a falsa economia verde das compensações que não compensam, ou a financeirização da natureza que transforma a própria crise ambiental e do clima em oportunidades de novos negócios e mercadorias. A expansão petroleira precisa ser barrada, e o vício da petrodependência precisa ser tratado com democracia e participação popular e debate aberto, sobre os usos e abusos do petróleo e seus derivados.
-Quais considera os principais impactos socioambientais que a cadeia do petróleo tem produzido para o Brasil e o planeta? No Brasil, quais os territórios mais afetados pela indústria petroleira?
Os impactos da cadeia do petróleo ocorrem em várias dimensões. No plano local, por exemplo, os territórios submetidos à extração são os primeiros a sentirem os impactos, desde o início das pesquisas sísmicas e abertura dos primeiros poços, até a extração propriamente dita.
No Espírito Santo, quilombolas, ribeirinhos e comunidades de pesca artesanal descrevem o que presenciaram nos anos 70, com a chegada das primeiras sísmicas, feitas com dinamite. A Petrobras subcontratava centenas de trabalhadores que eram subdivididos em linhas paralelas, e caminhavam quilômetros ao longo da costa Norte, de Linhares até Conceição da Barra, explodindo as dinamites a cada 15 metros.
Segundo um pescador e quilombola, ancião de Linhares, que trabalhou nessa atividade, cada explosão gerava uma cratera de 6 m2. Pode imaginar isso em quilômetros? Não importava o que tinha pela frente: como a lagoa de Suruaca, que foi totalmente drenada, os manguezais, nascentes, córregos etc. Também tem relatos de trabalhadores acidentados, como em Mucuri, no extremo Sul da Bahia. Um deles vive ainda hoje, sem as mãos, e sem reparação justa.
Na abertura dos primeiros poços, quilombolas de Conceição da Barra e ribeirinhos de Linhares presenciaram as primeiras perfurações, também nos anos 70. Nas narrativas, na proximidade de cada poço se construíam “piscinas”, onde eram depositados todos os materiais que saíam com a perfuração. Hoje sabemos (o exemplo da Texaco em Sucumbios, na Amazônia Equatoriana, já é um clássico a respeito) que esse material continha, além de óleo, lubrificantes de broca, terra, areia, metais pesados, material radioativo e as tóxicas “águas de formação”.
Estamos falando de 2 ou 3 km para dentro da terra. Essas piscinas estão até hoje nas comunidades, várias em estado precário, dentro de apps, escondidas. Mesmo que o poço esteja inativo, as piscinas seguem contaminando.
Sem contar os inúmeros vazamentos, derrames, e explosões, inevitáveis, quando se trata de óleo e gás. Não existe indústria petroleira segura. Nas proximidades de cada poço, a terra e a água já não permitem o uso humano ou dos animais e mesmo para plantios.
Seu Corumba, quilombola ancião de Conceição da Barra, falecido neste 2020, narrava uma situação em que construía um poço para se abastecer de água, a metros de sua casa, quando percebeu que minava óleo para dentro de seu poço, inviabilizando seu uso, “nem pra molhar a mandioca ou para as criações”. Sua propriedade foi perfurada por dezenas de poços e a Petrobras ainda construiu uma grande estrutura de armazenamento, com dutos para todo lado.
A estrutura da Petrobras tinha luz, mas a 300 metros dessa estrutura, na casa de Seu Corumba, as noites eram no candeeiro. Seu Corumba teve de ir viver na periferia da cidade de Conceição da Barra, pois em sua terra a vida não era mais possível. Morreu ali, deixando esposa, filhos, netos, sem reparação. Quantos seus Corumbas existem no Norte do Espírito Santo, no recôncavo da Bahia, em Sergipe, no Rio Grande do Norte, no Amazonas? Ao redor de cada poço maduro, se pode observar um radical processo de empobrecimento das pessoas e comunidades, concomitante à devastação da natureza, à contaminação da água e à expropriação da terra. Quem se apropriou da renda ali extraída? Para que usos foi destinado o óleo e o gás dali extraídos?
E estamos falando apenas do lugar da extração. Na aldeia indígena de Areal, em Regência, Linhares, na foz do Rio Doce, a explosão de um duto causou um enorme derrame de óleo, que jorrava sobre as casas da comunidade. Seu José Barcelos, cacique da aldeia botocuda, sua mãe e toda a aldeia narram a situação em que tiveram de deixar suas casas e a aldeia, até que o vazamento fosse controlado. Também nunca tiveram reparação da Petrobras.
Também no entorno das refinarias, são inúmeros os vazamentos e explosões lembradas pela população que vive no entorno. Como em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, onde a explosão da REDUC nos anos 70 até hoje vive na memória da sociedade local, quando uma estrutura gigante foi lançada para fora da refinaria. Também no entorno da REDUC, a poluição do ar está sendo investigada em sua associação direta com os inúmeros casos de câncer. Enquanto a refinaria se apossa da água da região, falta água nas casas da baixada fluminense.
Em Paulínia, São Paulo, o vazamento de uma refinaria da Shell contaminou todo o entorno e trabalhadores. O vazamento de um duto da REDUC na Baía de Guanabara, faz mais de uma década, até hoje contamina o território de pescadores de Magé e de todo o entorno. Onde estão as reparações individuais, coletivas? Como reparar a Natureza nessas situações? Sequer existem planos reais de emergência.
Seguindo adiante no metabolismo da indústria petroleira, também são profundos os impactos das indústrias que operam com o gás e com o óleo, para produção por exemplo de fertilizantes nitrogenados. Usados em larga escala na agricultura industrial e no agronegócio, contaminam a terra, a água, o alimento. Também no armazenamento desses fertilizantes, vimos a gigantesca explosão em Beirute, neste ano de 2020, ou na FACEN, em Sergipe, tal como no Texas, ou na Índia, décadas atrás.
E ainda nos derivados, a indústria plástica, cujos fragmentos descartados (microplátisco) são os principais responsáveis pela contaminação dos oceanos, do pescado e da vida marinha. E os petrolatos, na base dos cosméticos industriais, contaminando as pessoas.
Nas cidades, a fumaça dos caminhões e carros, a diesel ou gasolina, as partículas do asfalto em suspensão. Em cada um de seus derivados, o petróleo contamina os territórios por onde atua: o corpo, a comunidade, a cidade, em escala local, regional e global.
E ainda o efeito no clima. Afinal, a queima de petróleo e gás é a principal responsável pelo aquecimento global.
-Ao falar em “nem um poço a mais de petróleo”, não é uma plataforma muito chocante para as pessoas? Pode parecer pouco factível dado o uso tão cotidiano… Além do mais, há uma campanha muito forte em torno de “O petróleo é nosso”, ou seja, a ideia de que os recursos do petróleo usados de forma soberana, com uma Petrobrás forte e estatal, podem ajudar a desenvolver o país, melhorar a educação, entre outros aspectos.
Concordamos que o petróleo é nosso! E somos contra a privatização da Petrobras. O petróleo no subsolo é uma garantia real para que seja nosso, enquanto a Petrobras precisa planejar a própria transição justa: com os trabalhadores e trabalhadoras, com os terceirizados e precarizados, mas também com os povos e comunidades que sofrem desproporcionalmente os impactos e danos, e que nunca foram reparados. Se o nosso petróleo for extraído, nosso também será o colapso do clima e da natureza, nosso também será o aprofundamento das violações de direitos humanos e da natureza. Nossa será a responsabilidade pelas futuras gerações que vão habitar um planeta devastado.
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